Cezar Britto: Anistia não é amnésia

Britto: cidadania precisa conhecer história completa da ditadura

O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, defendeu no dia 16 em discurso no Superior Tribunal Militar (STM) o amplo acesso às informações e a abertura dos dados e arquivos secretos do governo para que a sociedade tenha completo conhecimento da história e dos fatos ocorridos nos porões do período da ditadura militar brasileira (1964-84).

Brasília, 16/03/2007 – “Anistia não é amnésia. O esquecimento que ela estabelece é do ponto de vista da responsabilização penal, não no sentido de apagar a história”. Com esta afirmação, o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, defendeu hoje (16) em discurso no Superior Tribunal Militar (STM) o amplo acesso às informações e a abertura dos dados e arquivos secretos do governo para que a sociedade tenha completo conhecimento da história e dos fatos ocorridos nos porões do período da ditadura militar brasileira (1964-84). A cobrança foi feita durante pronunciamento na posse do novo presidente do STM, tenente-brigadeiro Henrique Marini e Souza e o vice-presidente do Tribunal, José Coelho Ferreira.

“Precisamos conhecer em minúcias o que se passou ao tempo da ditadura – nos porões, nas guerrilhas, nos bastidores, nos tribunais – e não por razões de revanchismo, até porque a maior parte dos protagonistas nem sequer mais está viva, mas para entendermos o modo pelo qual se permitiu que tudo aquilo se instalasse entre nós”, sustentou o presidente nacional da OAB. Cezar Britto observou que o conhecimento da história é dever elementar da cidadania e, nesse sentido, é preciso reforçar a sociedade civil brasileira em sua luta para que a memória do período autoritário venha integralmente à tona.


O presidente nacional da OAB lembrou que a imprensa mencionou, recentemente, o caso de uma família vítima da repressão na ditadura, que se empenhou em requerer desarquivamento de seu caso na Corte Internacional de Haia. Destacou, ainda, que em sua edição de hoje o jornal The New York Times cobra do presidente Lula mais ousadia na investigação dos crimes contra os direitos humanos do período ditatorial, ao citar recente processo de uma família brasileira que teve um de seus membros vítima da tortura por parte de um oficial do Exército, e que pede reparação judicial.

“Seria constrangedor para nós que nossa história fosse resgatada de fora para dentro; esse é um dever nosso, um compromisso cívico dos brasileiros”, enfatizou Cezar Britto ao cobrar o resgate da memória do período ditatorial,com a transparência das informações acerca dos fatos ocorridos nesse período. Para ele, somente conhecendo em pormenores a história do período autoritário vivido pelo País se poderá entender as razões que levaram àquela situação e superar os traumas por ela provocados.


“Como o Brasil, que Sérgio Buarque de Hollanda classificou de Pátria do ‘homem cordial’, chegou a tais extremos? Precisamos conhecer e entender nossas contradições para superá-las. Uma sociedade que não conhece seu passado, condena-se a repeti-lo – o que é trágico”, observou Cezar Britto, destacando o importante papel que o STM exerce no sentido de auxiliar a cidadania no resgate da memória do período da ditadura.

A seguir a íntegra do discurso proferido pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, durante a cerimônia de posse do novo presidente do Superior Tribunal Militar (STM), tenente-brigadeiro Henrique Marini e Souza e do vice-presidente do Tribunal, José Coelho Ferreira. Na ocasião, Britto defendeu o amplo acesso às informações e a abertura dos arquivos secretos do governo para que a sociedade tenha completo conhecimento da história e dos fatos ocorridos nos porões do período da ditadura militar brasileira (1964-84).


“Senhoras e senhores


É com muita honra que, em nome do Conselho Federal da OAB, ocupo esta tribuna nesta solenidade de posse.
Saúdo inicialmente os novos presidente e vice-presidente desta Corte - respectivamente, o Tenente-Brigadeiro do Ar, Henrique Marini e Souza, e o dr. José Coelho Ferreira.


A ambos, profissionais exemplares, que atingiram o topo de suas respectivas carreiras, desejo, em nome dos advogados brasileiros, pleno sucesso na gestão que ora se inicia.
A advocacia brasileira e esta Corte têm uma longa convivência, algumas vezes tensa e conflituosa, mas, invariavelmente rica e pontuada pela História.
Nela, mesmo nos mais duros momentos do período autoritário, em que o Direito costuma ser a primeira vítima, o culto à Justiça jamais foi negligenciado. Aqui, a advocacia sempre foi ouvida.

Por paradoxal que pareça, nos mais conturbados tempos do regime militar, esta Corte era um dos raros espaços institucionais em que os excessos autoritários encontravam algum limite.


Aqui, a advocacia exerceu, corajosa e exemplarmente, a sua missão constitucional. Aqui, nesta tribuna, em que a advocacia nunca fora desrespeitada, a voz da defesa sempre foi escutada.


Aqui, a advocacia denunciou o crime de “lesa-cidadania”, que consistiu na revogação do habeas-corpus pelo truculento ato institucional nº 5.


Aqui, a advocacia livremente revelava o que os nebulosos porões da ditadura teimavam esconder da sociedade.
Esta é uma Corte que não deu as costas à defesa dos direitos humanos, nos insuspeitos depoimentos de advogados do porte de Sobral Pinto, Augusto Sussekind de Moraes Rego e Evandro Lins e Silva, que aqui pontificaram em defesa de presos políticos, merecendo, os três, o reconhecimento da advocacia quando agraciados com a medalha Rui Barbosa, a mais alta comenda da Ordem dos Advogados do Brasil.


Por essa razão, a OAB sente-se à vontade em aqui comparecer e em prestigiar esta solenidade de posse. Sente-se honrada em ocupar esta tribuna, que já acolheu inúmeros luminares da advocacia e do Direito. Tem orgulho de compartilhar o mesmo altar da cidadania já ocupado por Heleno Fragoso, Evaristo de Morais, Sepúlveda Pertence, Nilo Batista, Lino Machado Filho, Marcelo Cerqueira, e pelos hoje Conselheiros Federais Nélio Machado e Técio Lins e Silva, entre tantos outros, no curso da história.


Esta é uma Corte em que a advocacia brasileira escreveu, sem dúvida, algumas de suas mais audazes e notáveis páginas.
Não poderia ser diferente. O STM mostrou sempre independência, altivez e serenidade na interpretação da Lei de Segurança Nacional e na aplicação dos vários Atos Institucionais concebidos pelo regime de exceção, contrariando-o freqüentemente.


Há uma máxima no Direito segundo a qual, quando a política invade as portas de um tribunal, a justiça foge espavorida.
Aqui, essa máxima não foi desprezada, mesmo quando a política do regime militar, como é óbvio, exercia forte pressão sobre esta e demais cortes.


Mas aqui prevalecia – como ainda prevalece - o sentido de disciplina e obediência militar ao ordenamento legal.
Segundo depoimento do Conselheiro Federal Técio Lins e Silva, insuspeito e destemido defensor dos presos políticos, esse aspecto estóico da formação militar acabava sendo um trunfo importante para a produção de justiça, pois, quando havia alguma abertura na lei, os juízes militares a acatavam sem pestanejar, ainda que isso contrariasse politicamente o regime.


Neste Tribunal, a obediência ao Direito superpunha-se às pressões políticas – e este é um belo legado histórico para as gerações futuras.


Legado, é bom que se registre, que não nascera no Brasil pós-64.


Ao tempo em que ostentava a denominação de Supremo Tribunal Militar, em 1936, esta Corte deu também mostras de sua índole legalista, ao reformar corajosamente sentenças proferidas pelo Tribunal de Salvação Nacional, aquele sim um tribunal de exceção.


Sendo a mais antiga corte superior do país, fundada ainda ao tempo da Colônia, em 1808, por dom João VI, atravessou os mais diversos e polêmicos períodos da história do Brasil, do Império à República - na sua origem, sob o comando direto do Poder Executivo, e posteriormente, via Constituição de 1934, integrada ao Poder Judiciário.

Assim também foi quando atendia pelo nome de Conselho Supremo Militar e de Justiça, ou quando passou a ostentar o nome que agora utiliza, promulgado pela Constituição de 1946.

, portanto, de que o Superior Tribunal Militar, carrega, como nenhum outro, a memória de nossas fragilidades e grandezas.


E é por ser detentor desse singular patrimônio que deve compartilhá-lo com a cidadania brasileira, associando-se ao esforço da sociedade civil para que a memória do período autoritário venha integralmente à tona.


Uma sociedade que não conhece seu passado condena-se a repeti-lo - o que é trágico.


Precisamos conhecer em minúcias o que se passou ao tempo da ditadura – nos porões, nas guerrilhas, nos bastidores, nos tribunais.


E não por razões de revanchismo, até porque a maior parte dos protagonistas nem sequer mais está viva, mas para entendermos o modo pelo qual permitimos que tudo aquilo se instalasse entre nós.


Como o Brasil, que Sérgio Buarque de Hollanda classificou de Pátria do “homem cordial”, chegou a tais extremos? Precisamos conhecer e entender nossas contradições, para superá-las.


O conhecimento da história é dever elementar de cidadania. A imprensa mencionou recentemente o empenho de uma família, vítima da repressão, em requerer o desarquivamento de seu caso na Corte Internacional de Haia.


Seria constrangedor para nós que nossa história fosse resgatada de fora para dentro. Esse é um dever nosso, um compromisso cívico dos brasileiros.


Hoje mesmo, o jornal The New York Times cobra do presidente Lula mais ousadia na investigação de crimes contra os direitos humanos no período autoritário, de 1964 a 1984.
O jornal norte-americano menciona recente processo que uma família brasileira que teve um de seus membros vítima de tortura por parte de um oficial do Exército, e que pede reparação judicial.


Um porta-voz dessa família disse ao The New York Times que o objetivo do processo não é levar o referido oficial à prisão, e sim estabelecer, judicialmente, o reconhecimento de que "a tortura não era isolada, e sim institucionalizada" durante o regime autoritário.


É um dado, sem dúvida, importante para uma releitura do que ocorreu naquele período.


E nesse processo de releitura – uma busca mais aprofundada da verdade histórica e não, repito, um ato de revanchismo -, a cidadania brasileira tem nesta Corte um referencial de inestimável importância. E conta com sua colaboração.

Anistia não é amnésia. O esquecimento que estabelece é do ponto de vista da responsabilização penal, não no sentido de apagar a história. Esta deve estar sempre presente na memória do País, para que os erros não se repitam.


Hoje, em ambiente democrático, o STM cumpre seu papel constitucional de justiça especializada, voltada para a aplicação da lei aos militares federais - Marinha, Exército e Aeronáutica -julgando crimes capitulados como militares e definidos em lei.


Quero, também, registrar que o STM mostra-se em sintonia com a modernidade – e portanto merece elogios - quando aplaude a recente nomeação de uma mulher para integrá-lo, indiferente a protestos menores, ditados unicamente pelo preconceito obscurantista.


Refiro-me à eminente advogada e procuradora da República Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, que em breve será aqui empossada.


Outra demonstração de que se trata de uma Casa acima de sentimentos mesquinhos e preconceituosos é o fato de ter acolhido em seus quadros o advogado Flávio Bierrembach, que militou no Parlamento, em partido de esquerda, em oposição frontal ao regime militar – e, como advogado, notabilizou-se também pela defesa de presos políticos.
Bierrembach acaba de exercer, com a competência e integridade de sempre, a vice-presidência desta Corte. Sinal dos tempos.


Sinal de evolução política: desta Corte, da esquerda e do país.


Mas, irônica e paradoxalmente, nem sempre o poder político civil, nestes tempos de democracia, foi zeloso com esta Corte.


Por pelo menos duas vezes, protagonizou equívocos, com indicações impróprias, que mereceram repulsa - quer por parte de seus integrantes, quer por parte da advocacia e da opinião pública.


Foi assim em 1989, quando para cá foi indicado um político que jamais havia exercido a advocacia. E, o que é grave, exatamente para a vaga constitucionalmente destinada à advocacia. Foi rejeitado pela unanimidade dos ministros desta Corte, sem que o poder político ousasse protestar.


Mais recentemente, foi para cá indicado alguém cuja inscrição na OAB datava de apenas três meses. Seria caso para figurar no livro Guiness dos Recordes, se não houvesse pronta ação contrária do Congresso Nacional, da advocacia e desta Corte.
Exatamente em função desses dois episódios, não posso deixar de mencionar um defeito de origem na estrutura organizacional deste Tribunal Militar. Este reparo fica por conta de um aspecto: a exclusão da OAB na indicação de nomes para as vagas de advogados nesta Corte. Esperamos que isso possa ser superado em breve.

Consideramos que, sendo o advogado, nos termos do artigo 133 da Constituição, “indispensável à administração da Justiça” – e sendo a OAB sua entidade representativa – não pode estar excluída desse processo.


É um ente do universo judiciário e, como tal, quer dele participar, dar sua contribuição, sobretudo quando o advogado estiver em pauta.


No passado, ao tempo em que as chamadas liberdades fundamentais estiveram sob ameaça, a OAB assumiu a vanguarda da sociedade civil brasileira na luta pela redemocratização.


Hoje, restabelecidas aquelas liberdades, luta para que a cidadania – no sentido estrito e lato dessa palavra – se exerça na plenitude em nosso país.


Batalha para que a democracia participativa permita que o povo, na condição de soberano, contribua para o aperfeiçoamento da nação.


Por isso, empenhou-se em discutir em seu âmbito a reforma política e remeter ao Congresso um anteprojeto, para romper a inércia em torno desse tema, que historicamente tem padecido de um paradoxo: todos o consideram prioritário, mas sua implementação é sempre postergada.


Há décadas.


A reforma política proposta pela OAB consta de medidas moralizantes, como, entre outras, o financiamento público de campanha, a fidelidade partidária e a proibição de troca de legendas num mesmo mandato.


Dá ênfase também à participação popular, propondo a regulamentação dos instrumentos de democracia direta previstos no artigo 14 da Constituição: o plebiscito, o referendo e a lei de iniciativa popular. Não se quer revogar ou enfraquecer a democracia representativa, mas aprimorá-la, com a presença mais atuante do povo.


Não queremos que esses instrumentos sejam vistos como panacéia. Terão que ser regulados e não serão a eles submetidos as cláusulas pétreas constitucionais, como a democracia, a República, a periodicidade dos mandatos e o instituto da reeleição para cargos executivos – instituto em relação ao qual, diga-se de passagem, somos fervorosamente contrários.


O que se quer é um ambiente político mais transparente e participativo. Um ambiente capaz de proporcionar a materialização da Justiça em seu sentido amplo, para que essa carência-síntese da sociedade brasileira se torne um alimento acessível e consumido por todos.


Dessa forma, as demais mazelas da vida brasileira - exclusão social, analfabetismo, violência urbana, impunidade, descrédito das instituições e tantas outras – haverão de desaparecer definitivamente de nossa paisagem.


Essa a luta da OAB através da história. Por isso, obteve a credibilidade pública que tem. Mas na vida pública não há obra acabada. É tarefa contínua, permanente, a exigir vigilância constante.


Não tenho dúvida de que esta Corte, pelo enraizamento que tem na história nacional, desde suas origens, nos ajudará a edificar esta grande obra chamada Brasil, tornando-o cada vez mais democrático, justo, fraterno e igual.


Concluo reiterando aos ministros Henrique Marini e Souza e José Coelho Ferreira êxito no cumprimento do mandato que hoje iniciam.


Contem com a OAB e com a advocacia para as causas que fortaleçam e dignifiquem a Justiça e a cidadania no Brasil.
Muito obrigado.”

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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