Entrevista a Jacob Gorender, quando do lançamento do livro Combate nas trevas

Mário Maestri

Para o gáudio dos comerciantes de livros usados, Combate nas trevas: A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, de Jacob Gorender, encontrava-se há longos anos esgotado.  No ensejo do cinqüentenário de 31 de março de 1964, uma mais do que oportuna reedição dessa obra, pelas editoras Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo, acaba de recolocar, a preço acessível, o até agora talvez mais célebre trabalho historiográfico sobre o golpe  militar e, sobretudo, a resistência armada a ele. Apresentamos aos leitores informativa entrevista concedida pelo autor, em Milão, Itália, em 9 de outubro de 1987, quando do lançamento daquele trabalho, ao historiador Mário Maestri, então correspondente naquele país do Diário do Sul, publicação sulina do grupo Gazeta Mercantil.

Da Europa, o olhar crítico sobre o Brasil.

Mario Maestri, de Milão.

O lançamento do último livro de Jacob Gorender - Combate nas trevas: A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada - recebeu uma cobertura de imprensa pouco comum no Brasil.  A Folha de São Paulo e O Globo publicaram duas longas entrevista com Gorender e a revista Veja acaba de fazer uma reportagem de seis páginas sobre o ensaio. O próprio tratamento dedicado ao livro e ao autor pela Ática escapa ao comum. A editora desdobrou-se para lançar o livro, simultaneamente em todos os estados do Brasil, e adiantou a Jacob Gorender os direitos integrais da primeira edição, quando da assinatura do contrato.  A trajetória política de Gorender, seu status como pensador marxista e o caráter polêmico do livro explicam a movimentação em torno do lançamento. Após dedicar três anos de intenso trabalho ao livro, Jacob Gorender viajou a Europa para descansar e rever regiões do Velho Mundo que conhecera como pracinha da FEB, durante a II Guerra Mundial. Jacob Gorender recebeu as primeiras noticias sobre o lançamento de Combate nas trevas na residência de nosso correspondente em Milão, Mário Maestri, onde concedeu uma longa entrevista ao Diário do Sul.  Regina Vasquez

 

 

Mário Maestri: Gorender, por que tanta expectativa em torno do lançamento de Combate nas trevas?

Jacob Gorender: O livro foi lançado na segunda-feira e terá possivelmente alguma repercussão. Ele refere-se a um crucial período da historia brasileira que não pode ser apagado da memória de nosso povo. O grande protagonista do ensaio é a esquerda. Não se trata de um trabalho memorialístico. Apenas uns 15% referem-se a depoimentos pessoais do autor. E, nessas passagens, me documentei e não me apoiei apenas em minha memória. Não é também um livro sobre a repressão. O Estado repressivo entra como o adversário da esquerda e do movimento popular.  Trata-se de um trabalho que resultou de uma pesquisa historiográfica. Neste sentido, é o primeiro livro do gênero publicado no Brasil.

 

 

Mário Maestri: Há quanto tempo preparas o trabalho?

Jacob Gorender: Senti a necessidade de intervir neste debate quando começaram a aparecer os primeiros depoimentos de exilados. A partir da anistia, de 1979, comecei a reunir material para escrevê-lo. Foi muito difícil encontrar a documentação. Não há arquivos sobre as organizações clandestinas de esquerda.  Boa parte do material foi perdido ou é inacessível. Felizmente muitos companheiros me forneceram uma abundante documentação, quando souberam que me dedicava a este trabalho. Foi-me de grande valia o acesso permitido pelo bispo dom Evaristo Arns às cópias dos 750 processos do Superior Tribunal Militar, reunidas para a edição do livro Brasil nunca mais. Iniciei a redação há três anos, em 1984.

 

 

Mário Maestri: quais são os grandes temas do livro?

Jacob Gorender: Um terço do livro traz uma condensação historiográfica do processo que resultou no golpe de 1964. Trata-se de certa forma, de um desenvolvimento das teses que apresentei em meu ensaio A Burguesia Brasileira [São Paulo: Brasiliense]. Neste particular, minha principal tese é que o populismo foi um processo que serviu à burguesia nacional, durante um longo período e, depois, foi abandonado pela própria burguesia, quando não servia mais.  O golpe de 1964 procurava eliminar da politica estatal os resquícios populistas. O mesmo objetivo fora tentado, inutilmente, por via institucional, no período Jânio-Jango. Lançou-se então mão do golpismo.

 

 

Mário Maestri: Como definirias o populismo?

Jacob Gorender: O populismo foi uma forma de política burguesa para construir a nação burguesa com o consenso dos operários. Ele tinha, porém, um grande pressuposto: os trabalhadores não podiam ultrapassar certo limite.  O populismo não podia dar forças à classe operária.  Getúlio e Juscelino praticaram, com o apoio das classes dominantes, a política de industrialização, até que ela entrou em choque com os interesses do imperialismo.  Tanto um como o outro tiveram sempre o aval do PTB e do Partidão [PCB]. Quando o populismo começa a esgotar-se, a burguesia procura outras alternativas. O golpe farsesco tentado por Jânio foi uma antecipação do golpe de 64.  O período de Jango é marcado por esta constante tentativa da burguesia de pôr fim à política populista. Jango tenta responder, organizando o seu golpe.

 

 

Mário Maestri: Defendes que Jango organizava um golpe?

Jacob Gorender: Um golpe constitucional. No final do seu governo, Jango preparava um golpe. Apesar disto nunca ter sido discutido com clareza no PCB, o continuísmo foi apoiado por Giocondo Dias e por Luís Carlos Prestes. Prestes chegou a apoiar publicamente o continuísmo de Jango.  Esta política foi negativa para a esquerda. Nas altas esferas, políticos como Brizola e Arraes sentiram-se lesados nas suas expectativas presidenciais. E, neste momento, um empecilho constitucional dificultava a candidatura de Brizola. Era o tempo de "Cunhado não é parente..."

 

 

Mário Maestri: Qual foi o papel do Partidão nesta conjunta?

Jacob Gorender: Os comunistas possuíam um forte movimento sindical, estudantil e camponês, apesar de, desde os anos 50, não possuírem mais monopólio da esquerda. Tínhamos, então, as Ligas Camponesas, a Polop [Política Operária], o brizolismo, os trotskistas, o movimento dos sargentos e marinheiros, etc. Havia surgido uma esquerda católica, a Ação Popular [AP]. Tinha ocorrido a grande cisão que resultou no PC do B. Mas o PCB era grande força da esquerda. Estes foram anos de ouro do Partidão. Hoje ele tem um significado residual, em relação aquela época. É uma sobra.

 

 

Mário Maestri: Quais foram as conseqüências das políticas do PCB?

Jacob Gorender: Defendo que a derrota de 64 deve-se ao fato de o Partidão ter entregado a chefia do movimento a Jango. E Jango não quis lutar. Pior, ordenou que não se lutasse. Em 1964, havia possibilidade de vitoria [popular]. É certo que havia risco. Se poderia vencer ou perder. Creio que as possibilidades da esquerda e da direita eram as mesmas. A direita e os militares não estavam tão preparados.  Castelo apavorou-se quando o [general Olimpo] Mourão [Filho] precipitou o golpe. A força naval norte-americana (a operação Brother San) só chegaria no dia 11, trazendo armas, munição e combustível.  Havia um tempo para preparar a resposta militar. Não e verdade que a CGT e os sindicatos não tivessem força. Não aceito a tese de R.A. Dreifuss [1964: a conquista do Estado. Rio de Janeiro: Vozes, 1981] que, usando categorias gramscianas, afirma que, com o golpe, a burguesia teria conquistado um novo consenso. Ela abandonou consenso populista pela repressão direta. Acredito que 64 foi o auge da nossa luta de classe do século XX. Desde então não há mais lugar ao populismo.

 

 

Mário Maestri: E o Brizola?

Jacob Gorender: Brizola pode chegar ao poder, mas vai ser tão repressivo como qualquer general.

  

  

Mário Maestri: A análise de 64 não e o principal objetivo do livro?

Jacob Gorender: Mais de 70% é sobre o pós-64. A vitoria do golpe resultou na desagregação do PCB e um importante debate, até 1967. O debate levou a cisões internas e à fundação, com a participação de membros do comitê central, da ALN (de Carlos Marighella e Câmara Ferreira) e do PCBR (de Mário Alves, Apolônio de Carvalho e eu). Surgiu um quadro da esquerda completamente diferente. Prestes e Giocondo [Dias] chefiaram a defesa da linha pacifista e se opuseram a mudanças políticas.

  

  

Mário Maestri: Não é muito simpático ao "Cavaleiro da Esperança"

Jacob Gorender: Só se for a esperança da burguesia. Era um dever meu restabelecer a verdade histórica. Meu livro é a favor da esquerda. Os mitos fazem mal.  Prestes tornou-se um herói mitológico. Ele é um homem corajoso, de idéias, desprendido dos bens materiais. Como foram e são inúmeros outros revolucionários. Na realidade, é um homem de pouca cultura, um pensador medíocre.  Em todos estes anos não legou um só trabalho de interpretação marxista da realidade brasileira. Apenas relatórios, informes etc. Nem sempre escritos por ele. Foi sempre um desastre como político. Não teve a capacidade receber novas idéias ou compreender as conjunturas. Faltou-lhe sempre o contato real com a população brasileira. Como um político foi um desastre.

  

  

Mário Maestri: Voltamos à esquerda.

Jacob Gorender: Procuro descrever o importante debate e as influencias das experiências externas (Cuba, Argélia, Vietnã, etc.) que precederam o lançamento da luta armada apartir de 1968.  Falo das tentativas guerrilheiras dos brizolistas, das origens e das ações das três primeiras organizações armada marxista (ALN, Colina, VPR). Nesta época, as outras organizações não se dedicavam à luta armada. Em 68, ocorrem os últimos grandes movimentos de massa, sindicais, estudantis e populares. A direita militar preparava-se para golpear os últimos resquícios de direitos democráticos. As ações armadas foram as justificativas. O Ato Institucional nº 5 viria de qualquer maneira. A desculpa foi o caso Moreira Alves. Um discurso quase insignificante... Com o retrocesso do movimento de massa e o regime repressivo, as organizações que não se dedicavam à luta armada (PCBR, AP, etc.) viram bloqueadas suas ações. Ocorre então o que chamo uma imersão geral das organizações na luta armada.

  

  

Mário Maestri: Esta participação na luta armada foi geral?

Jacob Gorender: O PCB, que era pacifista, logicamente ficou à margem. O PC do B manteve-se, até lançar a guerrilha do Araguaia. O único grupo não-pacifista imune à guerrilha foi o POR (trotskista). Refiro-me a momentos importantes desta conjuntura: os seqüestros, o cerco do vale da Ribeira, etc. No relativo à morte de Marighella, procurei estabelecer a verdade histórica. Não podia permitir que a interpretação do frei Beto, sobre a CIA e os dominicanos, em seu livro Batismo de Sangue, continuasse sem respostas. Refiro-me a alguns casos não conhecidos pelo público, como o relacionamento mantido por Marighella e [Hermínio] Sacchetta. Este último fora expulso do PCB, há muito, como trotskista, e terminaria sendo duramente atacado por Jorge Amado, em [o romance] Subterrâneos da liberdade.

  

  

Mário Maestri: Enfim, o que ensinaria teu livro...

Jacob Gorender: Eu não ensino nada. A esquerda marxista brasileira fez recurso à luta armada em dois momentos da historia brasileira: em 1935 e 1968. O que não é muito comum na América Latina. Na ultima experiência, praticou o foquismo e o terrorismo. O milagre econômico e o isolamento do movimento de massas tornavam impossível uma vitoria. Uma experiência que deve ser estudada sem preconceitos. Apresento esta ação política como o recurso ao que chamo de violência incondicionada. Ou seja, quando não estão dadas as condições históricas.   [digitado por Anne E. Durgante] Especial para o Correio da Cidadania                                       

 

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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