Latinidade

Latinidade, por Jorge Lescano (Comentários de Raul Longo)

Interditado às universidades públicas pela ditadura, tive a sorte de nos anos 60 ser apresentado à Rua Sete de Abril, ponto de encontro noturno de artistas e intelectuais marginalizados pelo sistema instaurado desde então e que ainda hoje perdura em nossos meios de produção e divulgação de arte e cultura.

Ali obtive o mesmo ou melhor aprendizado do que poderia me oferecer a academia, já em processo de banimento de seus melhores docentes e esvaziamento do que ainda havia de aproveitável. Dos balcões dos bares da Sete de Abril e Praça Dom José Gaspar, meu curso intensivo se estendia à Vila Buarque, ou então seguíamos para aulas práticas sobre a realidade do povo brasileiro exposta nos becos e botecos do Bexiga, quando o samba ainda era marginal e o bairro não se tornara "da moda", o que só veio a ocorrer duas décadas depois.

De todos e tantos ensinamentos de meus notáveis mestres e mestras, sem dúvida dos mais proveitosos foi o desprezo à fatuidade do academicismo, do intelectualismo vácuo e fútil. Ninguém estava ali para ostentar medalhas e carteirinhas, ninguém estava alí para arrotar saberes inócuos, nem se expor a malabarismos de ridículas empáfias intelectualeiras, hoje tão comuns no real e no virtual.

Loucos, talvez, mas muito sinceros e integros, meus queridos mestres e mestras conseguiram, inclusive, com que eu reafirmasse os valores formados em minha infância proletária, dos quais a escola do ensino secundário insistiu por deformar e deseducar. E assim me forjaram muito melhor do que de mim fariam nas universidades.

Entre tantos bons e saudossos mestres, meu orientador em literatura e filosofia foi Mário Jorge Lescano, um "cabecita negra", como eram chamados em Buenos Aires os descendentes de índios vindos dos interiores. Emigrara de Entre Rios com os pais, em busca de sobrevivência, nos tempos difíceis em que os de traços indígenas tinham de se esconder das forças do ditador Perón, para não serem repatriados às suas províncias de origem. Talvez daí comece a surgir em Lescano a preocupação com a questão do artigo adiante, justificando sua erudição tanto na cultura pre-colombiana das Américas, quanto na européia.

Autodidata, não estou certo se Lescano suplantou o ensino básico. Acredito que não, pois a seriedade, a capacidade de depreensão e avaliação, o apurado senso crítico, o volume de informações e a impressionante capacidade de memorização que possue, certamente não resistiriam aos duvidosos métodos oficiais de ensino imposto nas escolas, daqui ou da Argentina. Métodos piorados ainda mais pelas ditaduras militares, mas já antes bastante limitadores e estou convencido que Lescano não alcançaria os mesmos conhecimentos se, como o fiz até o nível secundário, se deixasse perdendo tempo nos bancos escolares.

Há uns três anos, a caminho da Bahia para matar saudade da Salvador que tanto amei e rever outros amigos perdidos na distância de três décadas, aproveitei para uma parada em São Paulo, onde também não retornara há mais de uma. Ali recebi a difícil notícia do falecimento de Lescano e, quando já de volta ao meu computador, distribui pela internet diversos textos lamentando a perda e condenando os tais meios que, se dizendo de produção cultural, especilizam-se na difusão de nulidades omitindo e marginalizando àqueles que realmente poderiam nos fornecer fundamentos que nos auxiliem na compreensão de nós mesmos, possibilitando-nos oportunidades de evolução de nossa civilização.

Culpei a mim mesmo, na ocasião, por não ter nenhum texto do Lescano com que pudesse exemplificar e, na falta de outros, lancei mão do único que me restara, a apresentação que fizera para meu livro de poesias: A Cabeça de Pinochet, publicado em 1985.

Coincidentemente, já ali é abordada a temática do texto que aqui reproduzo e me foi enviado esta semana pelo próprio Lescano, como anexo a uma msg sem texto.

Levei um bruta susto, pois cético e ateu que sempre foi Lescano (e que Deus assim o preserve!), seria absurdo se dedicar a psicografias internéticas. De fato, morto não está, e é com grande alegria que utilizo o texto abaixo para reparar o mal entendido que ajudei a difundir, expondo aos que antes receberam o falso alarme as razões de meu orgulho pelos conhecimentos que auxiliaram em minha formação.

Acima disso tudo, o faço mais pelo conteúdo das informações sobre as quais Jorge Lescano nos convida a pensar:

LATINIDADE?

© Jorge Lescano

A raça é um conceito zoológico: refere-se ao tipo físico.

Otto Klineberg – As diferenças raciais

Periodicamente entram em circulação termos que, analisados de perto, revelam-se dúbios, quando não desprovidos de significado. Latino, latinidade, estão neste caso.

Segundo a antropologia, nunca houve uma raça latina, apenas língua latina. O espírito de síntese, ou a preguiça mental, acabaram identificando o nome da língua com o tipo racial do povo que a falava. Assim, os romanos passaram a ser latinos.

Costuma-se afirmar a existência de línguas neo-latinas, contudo, não é inadmissível a teoria de que tais línguas seriam anteriores à conquista romana. As línguas neo-latinas, então, seriam apenas línguas latinizadas. Isto é, teriam sido formalizadas pela gramática do império. Na época da conquista da América, a normalização daquelas línguas pela gramática latina é um fato irreversível. Contudo, na opinião de Ricardo Rojas: quando a civilização espanhola começou a ser transferida para o Novo Mundo, não estava constituída nem a unidade racial nem a consciência idiomática da metrópole.

A história da América Latina teve início no dia do desembarque dos navegantes europeus nas ilhas Bahamas, mais precisamente na rebatizada de San Salvador, atual Watling Island, à qual os nativos chamavam de Guanahani. A ocupação inicia-se pela palavra. “Assimilar” a cultura dos povos conquistados sempre foi uma prática sutil de dominação. Alterando-se os significados dos símbolos originais, torna-se possível implantar uma nova ideologia. Consumada esta primeira usurpação, foi fácil para os novos senhores impor outra escala de valores e assumir pelas armas os destinos das populações autóctones.

Os ibéricos chegam ao continente com a aura de Cultura Superior (hierarquia atribuída por eles mesmos) pois têm a herança da civilização romana acrescida da verdade “incontestável” de possuir o Deus verdadeiro. A identificação com Roma, duas vezes sacramentada, produz o “esquecimento” das diferenças raciais. Lusos, galegos, catalães, vascos, italianos em geral, são agrupados sob o rótulo latinos, ad majorem dei gloriam, presumivelmente. O curioso, se não cômico, é que o insigne genovês, que segundo a lenda perambulou pela Europa tentando o patrocínio sem ser levado a sério, somente foi reconhecido como Gênio da Raça, arquétipo de uma era, ao se perceber que chegara ao continente errado. Nessa altura, os aborígines já haviam sido denominados índios, pela única “razão” de que o Grande Almirante acreditou até a morte haver aportado na Índia.

A política colonial torna necessário a “purificação” do continente. As mais de duas mil línguas faladas na América antes da chegada dos europeus, são silenciadas pelo cristianismo. Por algum tempo circulará a expressão Ibero-América, mais tarde quase desaparece. Consagrado pelo uso nada casual, o latino impõe sua prosápia à terra mestiçada; e seus habitantes são meio brancos, pelo menos lingüisticamente. Os grandes manipuladores da história (políticos, militares, cronistas) operam o milagre da transformação racial segundo a etnia dos dominadores. O tempo, ajudado por estes taumaturgos, apaga aos poucos o termo americano que ainda identificava as populações falantes das línguas ibéricas nestas plagas. Hoje, o conceito latino, apesar de difuso, define etnia(s), comportamento e características psicológicas.

Também o nome do continente foi deturpado. Paul Herrmann, depois de noticiar a descoberta de Vespuccio (Temos seguido estas costas por um trecho de 600 milhas, e se estendem tão longe que ninguém pode prever seu término; sou do parecer que não se trata de uma ilha, mas de uma vastíssima terra firme(1)), detém-se a considerar a origem do seu prenome. Com suspeitosa naturalidade comenta: a extravagância dos Vespucci manifestou-se de modo ingênuo, por exemplo nos nomes de batismo dado aos descendentes varões. O pai de Amerigo se chamou Anastásio(2), nome extinto ou pelo menos raríssimo desde há séculos na Europa Central. O filho recebe o de Almerigo, italianização do germânico Almerico, também fora de uso desde tempo imemorial. O tom casual da referência sugere aquiescência unânime quanto ao nome, ou pelo menos à divulgação do fato, que torna desnecessário outros testemunhos. O pressuposto permite que encerre o assunto no parágrafo seguinte afirmando: E nada tem de ilógico que o geógrafo alemão Waldseemüller proponha aos cientistas de sua época se dê à nova terra do Ocidente o nome de batismo de Vespucci: América, isto é, a terra de Amerigo.

Uslar-Pietri, por sua vez, comenta o fato da seguinte forma: Martin Waldseemüller necessitava um nome para acompanhar o da Europa, da Ásia, da África, e como quem o havia revelado a Europa era Amérigo, pensou que podia chamar a esse continente com o nome desse personagem. Considerou denominá-lo Amérigen, mas achou que os nomes dos continentes eram femininos e se decidiu por América. [...] Assim, Amérigo veio a ter, sem sabê-lo, o dom supremo dos deuses, o de dar vida e destino através da palavra que nomeia.

Inútil citar outros textos que divulguem tal versão, esta é a verdade oficial. Há, entretanto, autores que a põem em dúvida, se não a refutam categoricamente.

Ricardo Palma cita as Cartas de Índias, documento publicado em Madri em 1877. Diz ele:

Trata-se de provar que a voz América é exclusivamente americana e não um derivado do prenome do piloto maior de Índias Albérico Vespuccio. [...] América, ou Americ é nome de lugar na Nicarágua e designa uma cadeia de montanhas na província de Chontales. A terminação ic (ica, ique, ico, quando castelhanizada) encontra-se freqüentemente nos nomes de lugares nas línguas e dialetos indígenas da América Central e das Antilhas. Parece que significa grande, elevado, proeminente, e se aplica aos cimos montanhosos não vulcânicos.

[...] Quando em 1522 publicou-se na Basiléia a primeira carta marítima com o nome de América província, Colombo e os seus principais companheiros já haviam morrido.

[...] Também é possível presumir que este nome de América tenha ido se espalhando pouco a pouco até se generalizar na Europa, e que não se conhecendo outra relação impressa descritiva dessas regiões, que a de Albericus Vespuccius, publicada em latim em 1505 e em alemão em 1506 e 1508, acreditassem ver no prenome Albericus a origem, um tanto alterada, do nome da América.

Na Europa, América não era nome de batismo de homem ou mulher, e chamando-se Vespuccio Albérico, fica claro que se fosse ele a dar nome ao Novo Mundo, este deveria ter-se chamado Alberícia, por exemplo, e não América.

Segundo o historiador visconde de Santarém, o florentino Vespuccio veio pela primeira vez ao Novo Mundo em 1499, na expedição de Cabral, e a descrição que escreveu destas regiões foi publicada por Waldseemuller, em Lorena em 1508. Foi Waldseemuller então que teve a injustificável idéia de sobrepor o nome do descritor ao do descobridor.

Quem era, afinal, este Vepuccio? Albérico ou Albérigo – não Amérigo nem Almerigo – Vespuccio nasceu em Florença em 18 de março de 1452; até 1496 foi diretor do escritório bancário dos Medici em Sevilha. Faleceu nesta cidade em 1512.

O historiador Francisco de Arce diz: Foi simples desenhista a serviço de Juan de la Cosa, piloto de Santonha e, aproveitando-se da exagerada modéstia – muito própria da raça – do piloto de la Cosa, assinou as cópias que fazia dos seus mapas, acabando por se apropriar delas, assim como das observações e narrações de viagens do seu patrão, e talvez das de outros navegantes hoje esquecidos.

[...] A idéia de dar o nome de América ao então chamado Novo Mundo, deve-se à proposta do cosmógrafo Martin Waltzemüller, em sua obra Cosmographie Introductio (Saint-Dié, 25 de abril de 1507), e aceita tácitamente por geógrafos e historiadores contemporâneos.

O tempo fez esquecer estes detalhes, e os partidários e discípulos do florentino Albérigo Vespuccio batizam-no Américo, pela assinatura de alguns dos seus mapas, apócrifos, como temos dito, trouxeram o erro muito divulgado de que América deve seu nome ao cartógrafo Vespuccio.

E o continente, mais uma vez, teve o seu nome espoliado.

Inversamente, porém com as mesmas intenções dos antigos romanos, o habitante das ex-colônias britânicas na América se apropria, em pleno século XIX (1845-48), de territórios do México como já havia feito com o nome do continente para se identificar como nação. Para compensar, um século mais tarde Hollywood, localizada em ex-território mexicano (Los Angeles, Califórnia) criará o latin lover, encarnado, segundo acreditamos, primeiro pelo italiano Rodolfo Valentino e depois pelo mexicano César Romero (3), entre outros.

O latino hoje ainda fala castelhano e português, o americano, inglês, por assim dizer. No Brasil, a língua portuguesa está sendo substituída paulatinamente por um dialeto composto de inglês ignorado com português esquecido, devidamente complementado por uma gestualidade simiótica (sic). Dia chegará em que falaremos uma mixórdia incompreensível, a julgar pela contaminação das culturas praticada pelos meios de comunicação de massa. A tal de globalização. O latino agora tem o tipo físico do maputche, do tcharrua, do quechua, do aimará, do maia... E às vezes é congo, mandinga, carabali. O americano é loiro. Operou-se a substituição de identidade sem prejuízos para o dominador de turno, pois é ele o administrador da língua.

Concluindo: aceitar nossa latinidade é admitir a necessidade, no século XXI, do xerife convocar os cruzados para defender nossa (!) ideologia, nosso (!) mercado e nossos (!) hábitos de consumo do fanatismo da raça portadora de turbante, alfanje de plástico e bactérias.

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1 – Provavelmente o autor alemão se refere ao seguinte trecho da Mundus Novus, pretensa carta de Vespuccio a Lorenzo de Medici em 1503 (?): Lá aquela terra soubemos não ser ilha mas continente, porque em longuíssimas praias se estende não circundantes a ela e de infinitos habitantes está repleta. Cumpre salientar que não se tem notícia do original deste documento.

2- Por respeito às fontes, mantemos as divergências de datas e grafias dos nomes próprios.

3- O nome espelha o texto: césar, este cargo sintetiza Roma; Romero (romeiro) é quem vai a Roma.

Bibliografia:

Rojas, Ricardo; Eurindia, Editorial Losada, Buenos Aires, 1951

Herrmann, Paul, Historia de los descubrimientos geográficos, vol. 2; Editorial Labor, Barcelona, 1967.

Vespuccio, Américo (sic) Novo Mundo, Cartas de viagens e descobertas; L&PM, Porto Alegre, 1984

Uslar-Pietri, Arturo, Valores Humanos, vol. 2; Editorial Mediterraneo, Madri, 1976.

Palma, Ricardo, Tradiciones Peruanas, Ediciones Troquel, Buenos Aires, 1959.

Arce, Francisco de, El nombre de América, in América y el vi

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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