Por que Lula não venceu no 1º turno?

As únicas certezas das eleições no Estado de São Paulo eram a de que Serra venceria para o governo ainda no primeiro turno. A segunda, era a de que Lula perderia aqui, mas também seria eleito pelo povo brasileiro ainda no primeiro turno, impulsionado pelas classes menos favorecidas.

RONALD KUNTZ*

As únicas certezas das eleições no Estado de São Paulo eram a de que Serra venceria para o governo ainda no primeiro turno. A segunda, era a de que Lula perderia aqui, mas também seria eleito pelo povo brasileiro ainda no primeiro turno, impulsionado pelas classes menos favorecidas.

Para desespero dos adversários, o presidente-candidato Lula parecia beneficiário de inexplicável blindagem, invulnerável aos efeitos de sucessivos escândalos protagonizados por velhos companheiros e das devastadoras críticas que envolviam corrupção, mensaleiros e sanguessugas que ceifaram metade do primeiro escalão, além de aliados e líderes do PT.

Sua aparentemente inabalável liderança em todas as pesquisas o tornou um fenômeno, espécie de Aquiles tupiniquim, inexpugnável em seu misterioso efeito "teflon". Na Brasmarket, investiguei a fundo e descobri que o fenômeno tinha explicação lógica e racional. Após mais de 20 anos de intensiva e monocórdia propaganda em torno da moralidade pública e do discurso da ética, o PT obteve êxito e tornou-se o paladino da moralidade no País.

Ao envolver-se nos escândalos, o PT usou o único argumento que lhe sobrava, admitindo que não era melhor nem pior do que os outros políticos brasileiros e valia-se das mesmas práticas que antes denunciava. O resultado foi que afundou na vala comum da rasteira e negativa imagem da classe política que forjou e foi o principal algoz. A sociedade brasileira, que enfim acreditara no discurso petista e levara Lula ao poder em 2002, diante da overdose de escândalos e do choque brutal que despertou sua indignação, caiu na real e deixou de acreditar que houvesse políticos honestos e dignos de confiança.

E o resultado foi o expresso por dois exemplos muito populares: o do Tamanduá que abraça a onça ou o do abraço do afogado: agressor e agredido, vítima e algoz, todos morrem juntos ao final.

A absolvição dos deputados envolvidos nos escândalos, as inúmeras denúncias de acordões para evitar convocações que poderiam comprometer figurões de lado a lado, o descaramento e imprecisões terminológicas dos depoentes etc., tudo isso fartamente exposto e denunciado pela Imprensa brasileira, foram as provas que faltavam de que todos tinham lá rabos a ocultar, e que tudo não passava de uma contenda política entre rotos e rasgados.

Essa é a história recente da ética no Brasil: o detentor do seu monopólio afundou, mas levou com ele a rapadura, não permitindo que seus algozes a tomassem e pudessem usá-la. A bandeira da ética virou o Santo Graal tupiniquim, ou melhor, a nossa excalibur, à espera de um herói que consiga desencravá-la da rocha: para o eleitor em geral, e principalmente para o de baixa renda e escolaridade, nenhum político presta. Ruim por ruim, escolhe o candidato que considera que fará mais por ele e pelos mais pobres e humildes.

O juízo final -- Os adversários do PT são beneficiários de uma dádiva: com os quadros e os aliados que mantém, o PT não precisa de inimigos -- seus cavalos de Tróia e lideranças são experts em atirar em seus próprios pés e servem de oposição com eficácia fabulosa.

Nenhuma outra força política é tão atrapalhada e especializada em marcar gols contra: o denunciante era um aliado; o principal responsável pela CPI que apurou o escândalo do mensalão foi o senador petista Eduardo Suplicy, o mesmo que complicou a vida do partido dando mais evidência e credibilidade aos irmãos e detratores do PT no caso do assassinato do então prefeito Celso Daniel na CPI mista do Senado.

Aqui em São Paulo, principal reduto eleitoral do País, não foi diferente. Só que desta vez o cavalo de Tróia foi outro expoente do PT, o senador Aloizio Mercadante que, além de levar a cabo uma campanha limpa, morna e inepta como convinha ao adversário e franco favorito na disputa, o tucano José Serra, ainda meteu os pés pelas mãos e foi um dos protagonistas do maior escândalo já ocorrido em reta final de eleições da história brasileira: a atabalhoada compra de um misterioso dossiê que supostamente envolveria os dois candidatos tucanos da mais alta plumagem (Serra e Alckmin) num episódio policialesco no escândalo de corrupção conhecido como dos sanguessugas.

A incompetência de toda a operação -- além de deixar exposto o que seria o maior beneficiário -- somada à inépcia dos envolvidos e à incapacidade de formular estratégia eficaz de reação expôs e comprometeu o então imbatível projeto presidencial do PT. O partido perdeu o passarinho que já tinha na mão (a conquista da presidência) e também os dois que passaram voando (sem aperceber-se que pássaros voando eram, na verdade, tucanos).

A petista Marta Suplicy, mesmo com uma rejeição maior do que a do insosso e elitista Mercadante teria, com absoluta certeza -- registrada em nossas pesquisas -- inserção social maior e performance muito melhor do que a do rival Mercadante. Mercadante dividiu o partido em São Paulo ao insistir na postulação e depois ignorou os interesses e necessidades partidárias maiores (promover o máximo desgaste possível aos candidatos tucanos no maior reduto do País) fazendo campanha centrada no próprio umbigo, como se fosse ele e não Serra o franco favorito da disputa. No afã ególatra de mostrar-se gentleman, esqueceu-se da missão de apontar os defeitos e erros de adversários, o seu passado e as ligações deles com um governo que terminou melancólico, com péssimo índice de aprovação.

O dossiê -- Além dos cavalos de Tróia e dos erros do PT em São Paulo, o dossiê colocou a lenha que faltava para alimentar o fogo devastador dos formadores de opinião que cederam generoso espaço e destaque ao discurso competente da oposição e aos seguidos equívocos da reação petista. Ajudados por munição ilícita, fornecida por um agente de uma instituição que, ao menos teoricamente, existe para preservar a lei, as fotos "vazadas" pelo delegado federal forneceram as imagens fortes que faltavam para a materialização de um crime até então virtual: foram a moldura que reforçou a contundência do discurso tucano-pefelista e acuou uma aturdida e confusa cúpula petista, tanto em nível estadual como nacional, dando forte contribuição para levar a eleição ao segundo turno.

Sabiamente os líderes oposicionistas transformaram o acessório ou secundário no foco principal do debate: de onde saiu o dinheiro para comprar o dossiê tornou-se, de repente, o discurso de uma nota só, repetido invariável e repetidamente pelos líderes oposicionistas. Mais importante, até, do que saber se eram verdadeiras as provas que supostamente vinculariam os principais candidatos tucanos ao escândalo de corrupção na área da saúde.

Como o discurso dos adversários não foi questionado por aturdidos petistas, que aparelharam o Estado nos baixos escalões, mas esqueceram-se de ocupar com gente de confiança os escalões decisórios e operacionais do governo, talvez por peso na consciência ou por inépcia, aceitaram a carapuça que lhes impôs o adversário e não foram capazes sequer de reagir à altura, resgatando o foco central para o fato do que interessa mesmo ao eleitorado brasileiro é saber não só de onde saiu dinheiro mas também que informações continha o dossiê e se eram ou não procedentes.

O fato é que o dossiê alimentou o discurso anti-Lula e teve divulgação farta e repercussão inaudita, reforçada por imagens que lembram em tudo aquelas usadas em 2002 e que destruíram as chances eleitorais da então governadora do Maranhão, Roseana Sarney, que ameaçava a aliança que viabilizaria a entrada do então ministro e aspirante a candidato José Serra na disputa.

A massiva campanha adversária e dos veículos, aliada à tíbia resposta e baixa solidariedade do principal beneficiário do dossiê, o candidato petista ao governo, que desde logo colocou-se no surrado papel de traído, permitiu que as suspeitas chegassem ao candidato do seu partido à presidência, colocando Lula mais uma vez em xeque e na incômoda posição defensiva.

O eleitor de São Paulo -- Mas a responsabilidade pela ocorrência do segundo turno nestas eleições coube ao eleitorado paulista, que deu uma vitória por margem avassaladora aos candidatos do PSDB. Alckmin recebeu 64% dos votos, contra 36% dados a Lula: 28 pontos percentuais de diferença. E Mercadante foi derrotado por uma diferença de 26 pontos percentuais. Tivesse Lula conquistado apenas mais cinco pontos percentuais de votos dados a Alckmin em São Paulo, a diferença seria de 59% a 41% e Lula teria vencido a eleição no primeiro turno.

O pior para Lula é que os eleitores de Heloísa Helena e de Cristovam Buarque tendem a depositar preciosos votos em ninho tucano: o PSOL é fruto da diáspora partidária de ex-petistas que se julgaram traídos pelo PT e os eleitores do pedetista, ex-ministro demitido por Lula, são o supra-sumo da elite brasileira, que também terá muito mais afinidades com Alckmin do que com Lula.

Para complicar ainda mais as coisas, a incompetência do PT de São Paulo e a prepotência e presunção do comando nacional, que dava Lula como vitorioso e o sentou no trono antes da hora, achando desnecessário o confronto. Resultado: subestimaram e preservaram o adversário Alckmin. O presidenciável tucano sai da disputa do primeiro turno em forte ascensão, incólume e com a imagem de paladino e representante das forças do bem, rotulando Lula como o representante das forças do mal, do atraso e da ignorância.

Os desafios do PT -- O grande desafio de Lula durante o segundo turno será provar que Alckmin não é quem parece ser, e isto, apesar de o tucano ter sido blindado pela deficiência estratégica e pela própria indiferença do PT, que não fez a lição de casa no primeiro turno e, agora, acuado, terá de passar ao ataque, sob pena de perder uma eleição que considerava ganha. No terreno moral, por sua própria imprevidência, a guerra foi perdida pelo PT e só lhe resta nivelar os adversários por baixo.

Se Lula conseguir mostrar o entorno de Alckmin e os piores dentre seus aliados, retribuindo na mesma moeda a estratégia tucano-pefelista de associá-lo a companheiros que tombaram em função dos escândalos, o jogo pode equilibrar-se e, de novo, desviar o foco da questão moral, reconduzindo a demanda eleitoral à velha questão pragmática: se ambos se equivalem nas más companhias, e terão de governar com elas, qual deles faria mais pelos pobres e pelos menos favorecidos? Qual deles teria maior capacidade de vender sonhos e perspectivas de progresso ao povo?

Outro grande desafio do PT neste segundo turno, contudo, não se resume a reduzir a diferença entre Alckmin e Lula no maior colégio eleitoral do País, mas assegurar que a vitória que ele obteve no primeiro turno em Minas Gerais, que é o segundo colégio eleitoral brasileiro, seja mantida. O problema de Lula é o governador eleito de Minas, que não se empenhou pelo companheiro tucano no primeiro turno em razão de projeto político e ambição de cooptar também os votos petistas do Estado. Uma vez eleito, Aécio Neves pode mudar de posição e jogar todo o peso em favor de Alckmin no segundo turno, demonstrando força política e revertendo os resultados desfavoráveis ao presidenciável tucano em 1º de outubro.

Minas Gerais, assim, deverá ser fonte permanente de preocupação e atenção petista no segundo turno, sob pena de equilibrar um prato (São Paulo) enquanto o outro (Minas Gerais) se espatifa. Como se sabe que não se faz omelete sem partir os ovos, nós, eleitores, podemos esperar um segundo turno tenso, aguerrido e muito diferente do que foi o primeiro.

Pelo menos até agora no quesito competência as forças de oposição têm sido muito mais competentes do que as governistas, mas creio que o primeiro turno trouxe surpresas que renovaram uma lição que todos nós, estudiosos da política, sabemos de cor: em política não existe peru (morto de véspera). Ambos os contendores são experientes e nenhum deles pode ser subestimado.

* Escritor, pesquisador e especialista em Marketing Político.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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