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A todo momento surge um novo culpado pelos transtornos nos aeroportos. Mas a raiz dos problemas está na resistência dos militares em compartilhar com o governo civil a prerrogativa de construção de um novo paradigma de Defesa Nacional.

Nelson Breve e Maurício Hashizume - Carta Maior

BRASÍLIA – Quem pergunta a sentinelas fardados em qual dos prédios da Esplanada dos Ministérios fica o gabinete do ministro da Defesa, a autoridade máxima no organograma das Forças Armadas, ouve o seguinte questionamento:
- Gabinete de qual ministro?
A reação espontânea dos soldados desnuda a continuidade do estranhamento existente entre a corporação militar e o Ministério da Defesa, instituído em 1999. Esse é o pano de fundo da sucessão de transtornos experimentados pelos usuários do transporte aéreo desde o mais grave acidente da história da aviação brasileira, que acabou com a vida de 154 pessoas. De tempos em tempos desde outubro, as confusões nos aeroportos voltam à cena, insuflados pelos meios de comunicação que não demonstram a mesma disposição na cobertura jornalística do oceano de carência da maioria da população que depende de outros serviços públicos muito mais básicos.

E a cada feriado, surgem nas páginas de publicações e nas telas dos informativos eletrônicos um novo culpado: controladores do vôo, "ponto cego" de radares, incompetência e falta de planejamento por parte do governo, práticas indevidas de empresas, etc. Existe, de fato, uma série de explicações diferentes, interdependentes e complementares para o caos no setor aéreo, mas todas levam a uma mesma raiz: o resquício da ditadura militar que ainda não desencarnou das Forças Armadas.
O recente período democrático do País já supera em mais de 300 dias os 20 anos, 11 meses e 14 dias do regime autoritário (1964-1985), mas os militares ainda resistem em transferir para o governo civil, mesmo com as atribuições da pasta hoje comandada pelo ministro Waldir Pires, o papel de protagonista no processo amplo e de longo prazo, ainda pouco discutido pela sociedade, de construção de um novo paradigma de política de Defesa Nacional.
Na prática, isso impede que o Brasil tenha um sistema integrado de Defesa, que não sirva apenas para assegurar a soberania nacional e territorial por meio da utilização das Forças Armadas, mas que esteja sintonizado com uma estratégia mais ampla de desenvolvimento econômico e social, participando e interagindo com o planejamento, estímulo e apoio às políticas industriais e tecnológicas do País. Esse é o papel de um Ministério da Defesa nas nações que desejam ter alguma relevância no mundo. Se o Brasil quiser se tornar um pólo de influência na segunda metade do século XXI, precisa se preparar como outras nações estão fazendo. É isso o que pensa o ministro da Defesa, Waldir Pires, que anda estudando com entusiasmo o modelo francês.
Na França, o Ministério da Defesa é comandado há quatro anos por uma advogada, etnóloga e professora universitária. A ministra Michèle Alliot-Marie é uma líder expressiva da direita francesa. Dirigente desde o início da década passada da Rassemblement pour la Republique (RPR, União pela República), o partido do atual presidente Jacques Chirac, ela já foi secretária de Estado encarregada do Ensino e ministra da Juventude e dos Esportes. Dos três principais cargos da cúpula do Ministério da Defesa, apenas um é ocupado por militar, o de chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Os outros dois são ocupados por civis. Um cuida de toda a Administração do Ministério, como uma espécie de secretário-executivo e o outro executa a política de Armamentos, que faz a integração com as políticas industrial e tecnológica (exemplo: a demanda militar por modernos mísseis balísticos intercontinentais impulsiona a indústria aeroespacial francesa).
No entanto, o ministro Waldir Pires tem consciência de que a história se faz passo a passo e não é encostando os militares contra a parede que eles entregarão os nacos de poder que ainda mantêm nas estruturas do Estado. Para não criar um ambiente de atrito com áreas importantes do comando das Forças Armadas, ele vem assumindo todo o desgaste da crise no setor aéreo, que mistura problemas de gestão, incompatibilidades, interesses e precipitação das empresas.
Um dos caminhos paralelos encontrados pelo governo foi a formação de um grupo de trabalho interministerial (GTI) sobre controle de vôo, com participação de representantes de entidades da sociedade civil ligadas ao transporte aéreo. Concebido como o principal fórum de negociação na busca por soluções para o caos na aviação, o GTI concentrou esforços e apresentou, um mês antes da previsão de encerramento dos trabalhos, 13 sugestões de caráter estrutural (leia nota do Ministério da Defesa) para o governo. A principal delas aparece no item número 2: “A criação de um organismo civil, subordinado ao Ministro da Defesa, com gestão própria, o qual será o responsável pela gerência das operações aéreas da Aviação Civil no Espaço Aéreo Brasileiro, e pela interatividade com os demais elos da atividade”. O sistema integrado de controle de vôo em vigor hoje conta com a participação de civis, mas as principais decisões continuam sendo tomadas dentro da hierarquia militar.
Também participou das reuniões do GTI Álvaro Pinheiro da Costa, o chefe da área técnica do Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), órgão que coordena o gerenciamento do espaço aéreo. Contrariando as resoluções, porém, os militares apresentaram uma ressalva ao documento do GTI. "A adequação dos recursos, salários e estruturas das organizações existentes é solução para as deficiências conjunturais no Sistema de Controle do Espaço Aéreo, portanto, o Comando da Aeronáutica não concorda com a criação de uma nova organização", sustenta o documento proposto pela caserna. "É importante que esta ressalva seja mantida, sob pena de sermos imputados a pecha de omissos", segue a ressalva.
Na audiência realizada pela Comissão de Defesa do Consumidor (CDC) da Câmara dos Deputados, o comandante da Aeronáutica, Luiz Carlos Bueno deu duas justificativas para a adoção do sistema integrado. A primeira é a tradição militar, traduzida em figuras emblemáticas como o brigadeiro Eduardo Gomes. A segunda é econômica: a implantação de sistemas totalmente separados de controle da aviação civil e da aviação militar demandaria a aquisição de novos equipamentos e uma contratação significativa de quadros capacitados. “Não temos problema em ceder o controle [da aviação civil] para civis”, afirmou Bueno na ocasião.
O comandante enfatizou, porém, que uma decisão desse porte precisaria partir de uma decisão governamental e ainda ser aprovada no Congresso [a responsabilidade pela regulação do controle do espaço aéreo, diga-se, foi retirada do projeto que criou a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac)]. Sublinhou também que o sistema integrado brasileiro continua sendo uma referência mundo afora e que os controladores de vôo militares (dos 2,7 mil profissionais, 2,2 mil são militares e apenas 500 são civis) garantem o funcionamento do sistema.
Para o presidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Proteção ao Vôo (SNTPV), Jorge Carlos Botelho, a definição sobre a gestão da aviação civil está no cerne dos distúrbios recorrentes no setor. “A questão estrutural já foi colocada. Agora depende do governo”, coloca. “Se isso não for resolvido, até questões importantes como a da definição da carreira de controladores ficam em segundo plano”.
Opinião muito semelhante tem Célio Eugenio de Abreu Junior, do Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA). “Há um distanciamento entre a gestão pública [que hoje está sob a alçada do Comando da Aeronáutica] e a gestão privada das concessionárias [empresas]”. Ele aponta a necessidade de um novo planejamento da aviação civil, que deveria começar por uma auditoria profunda sobre o sistema. Para Abreu, a lógica de relacionamento com base no poder e a da realização de tarefas por meio da força, características da gestão militar, precisa dar espaço para uma relação com base no diálogo em que a autoridade seja resultante do reconhecimento. “A sociedade precisa se aproximar mais do setor”.
Botelho nega a ocorrência de ações deliberadas dos controladores de vôo civis para prejudicar o tráfego aéreo. “Seria uma sabotagem contra nós mesmos. É um terror ter que colocar um avião no chão quando há pane, por exemplo. E todos têm atuado de forma exemplar mesmo com toda pressão psicológica”, salientou na mesma audiência na CDC no Parlamento. Uma das cobranças mais veementes do presidente do SNTPV recai sobre as resoluções do Conselho de Aviação Civil (Conac), que se reuniu durante do ano de 2003 e traçou as diretrizes de uma política para o setor. “O crescimento previsto ocorreu, mas as determinações não foram cumpridas”, realça.
Em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo ainda em fevereiro de 2005, em plena crise da Varig, o atual presidente do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias (SNEA), Marco Antônio Bologna já lamentava o rarefeito encaminhamento dado às resoluções do Conac. “Infelizmente, a última reunião do Conac foi em outubro de 2003. Baixou 18 resoluções determinando uma série de ações em diversos ministérios do governo. Nada aconteceu”, cravara. “O fato é que não há mais tempo. Existem entraves importantes de curto prazo. Ficamos discutindo solução para empresas individuais e não focamos no que interessa: o ambiente de regularização. Se essas medidas tivessem sido implantadas há mais tempo, talvez hoje não viveríamos situação tão crítica”, declarou, antevendo o caos que veio a se confirmar nos últimos meses deste ano. Bologna, que é presidente da TAM, também defende uma modificação no modelo de gestão de todo o setor.
Relatório da Câmara e posição do governo
O relatório final aprovado pela comissão externa da Câmara dos Deputados que acompanhou a crise no setor aéreo, assinado pelo deputado federal Carlos Willian (PTC-MG), responsabilizou o Ministério da Defesa em conjunto com o Comando da Aeronáutica por terem descumprido resoluções do Conac, em especial a que recomendava a apresentação, por parte do Departamento de Aviação Civil (DAC) e do Decea, de uma proposta de ampliação das atividades do Programa de Formação de Recursos Humanos (015/2003). Como sucessora do antigo DAC, a Anac também é co-responsabilizada. E até o próprio Congresso Nacional é responsabilizado pelo relator, por não ter cumprido seu papel fiscalizador.
Nos últimos anos, a Aeronáutica tem formado apenas controladores militares, que ingressam na carreira por meio de concurso público para graduação de terceiro-sargento. A formação do militar controlador do trafego aéreo é realizada na Escola de Especialista de Aeronáutica (EEAR). Até 2000, eram formados, em média, 70 controladores por ano.De 2001 para cá, o número praticamente dobrou, chegando a 158 formados em 2005. No entanto, neste ano, por exigência do Ministério da Educação, a duração do curso de formação aumentou de um ano e meio para dois anos, o que deve reduzir o número de formandos à metade. Além disso, a categoria convive com uma alta rotatividade de oficiais militares e há controladores mantendo um segundo emprego como motoristas e seguranças de shopping centers.
A comissão externa isentou o presidente da República de responsabilidade, mas criticou duramente o Comando da Aeronáutica, por falta de previsão, planejamento, coordenação, controle de pessoal e de equipamentos, evidenciando a incapacidade gerencial do órgão para acompanhar o crescimento e o desenvolvimento das atividades da aviação civil. Durante a audiência pública da Comissão de Defesa do Consumidor, o brigadeiro Bueno citou planejamentos elaborados pelo Decea para o setor de aviação com horizontes de 5, 10 e 15 anos. A reportagem de Carta Maior entrou em contato com a assessoria de imprensa da Aeronáutica para solicitar cópias desses documentos, mas não recebeu nenhum retorno até o fechamento desta reportagem.
A despeito de todas as responsabilizações, o relator Carlos Willian considera ainda prematura a proposta de desmilitarização do sistema, que demoraria cerca de 20 anos para ser concluída. Mas não descarta a medida. Propõe, inicialmente, estudos mais detalhados sobre plano de carreira, custos de pessoal, material e instalações, riscos de greve, treinamento e formação do pessoal civil, bem como a integração com o controle militar do espaço aéreo. De acordo com o relatório aprovado, não ficou evidenciado que os problemas que levaram à crise estariam vinculados especificamente à gestão militar do sistema, mas, sim, à má gestão.
Por ora, o governo permanece analisando as propostas estruturais do GT. O ministro Waldir Pires não mede esforços para assegurar a importância estratégica e a essencialidade das Forças Armadas, que merecem ser “prestigiadas e bem equipadas” e são “indispensáveis” para que seja cumprida “a natureza do poder republicano”, firmada no Parágrafo Único do Artigo 1º da Carta Magna: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
A soberania dentro do sistema republicano, adverte o ministro, já não se baseia mais em lideranças pessoais e assume um caráter de destaque para o desenvolvimento do País, na medida que cresce a relevância da integração regional no cenário global de hoje, marcado por incertezas. E as lições do passado que deixaram rastro da exclusão e da opressão confirmam a necessidade da mudança processual na natureza das relações entre civis e militares, preservando a comunhão entre os diferentes setores da sociedade e evitando atritos inconvenientes. “Não existem saltos institucionais”, conclui Pires.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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