Considerações sobre a passagem de um a outro modo de produção

Em artigo de minha autoria intitulado "A história universal e a 'Teoria Geral das Revoluções'", lê-se: "a gênese de cada modo de produção pode ser única, específica, sendo impossível, portanto, confundir os constituintes genéticos - tanto seus elementos constitutivos como as inter-relações que os vinculam - de um modo de produção com os de outro.


Iraci del Nero da Costa *


Em artigo de minha autoria intitulado "A história universal e a 'Teoria Geral das Revoluções'", com o qual pretendi criticar, basicamente, o determinismo mecanicista próprio do stalinismo e de outros pensadores que se tomaram como marxistas, lê-se: "a gênese de cada modo de produção pode ser única, específica, sendo impossível, portanto, confundir os constituintes genéticos - tanto seus elementos constitutivos como as inter-relações que os vinculam - de um modo de produção com os de outro.

De outra parte, na medida em que não tem de haver, necessariamente, apenas um padrão genético, torna-se impossível o estabelecimento de uma lei, ou conjunto de
regularidades, que explique, de maneira unívoca, abrangente e genérica, a passagem de um para outro modo de produção." (Cf. versão em português do Pravda.ru online, 20/07/2012, disponível em: http://port.pravda.ru/mundo/
20-07-2012/33392-teoria_geral_revolucoes-0/).

No texto vertente discorro mais especificamente sobre a forma assumida, em cada caso, pela aludida "passagem".(1)


Quanto a este tema não podemos nos socorrer das opiniões de K. Marx o qual, interessado essencialmente em analisar a lógica do capital industrial e em estabelecer os caminhos teóricos e práticos aptos a concretizar a superação do modo de produção capitalista, desenvolveu um método em face do qual se tornou dispensável o estudo dos modos de produção pretéritos, segundo ele: "...nuestro método pone de manifiesto los puntos en los que tiene que introducirse el análisis histórico, o en los cuales la economía burguesa como mera forma histórica del proceso de producción apunta más allá de sí misma a los precedentes modos de producción históricos. Para analizar las leyes de la economía burguesa no es necesario, pues, escribir la historia real de las relaciones de producción. Pero la correcta concepción y deducción de las mismas, en cuanto relaciones originadas  
históricamente, conduce siempre a primeras ecuaciones - como los números empíricos por ejemplo en las ciencias naturales - que apuntan a un pasado que yace por detrás de este sistema. Tales indícios, conjuntamente con la concepción certera del presente, brindan también la clave para la comprensión
del pasado; un trabajo aparte, que confiamos en poder abordar alguna vez".


(grifos de MARX, cf. Elementos fundamentales para la crítica de la economía
política (Grundrisse) 1857-1858. 11a ed. México D.F.: Siglo Veintiuno Editores,
vol. 1, 1980, p. 422). Infelizmente, como sabemos, Marx não chegou a efetuar o
prometido estudo; vemo-nos, pois, obrigados a especular sobre o aludido passado.


Diga-se desde logo que, como quer K. Marx, empresto papel fundamental ao elemento econômico, ou seja, ao "desenvolvimento das forças produtivas"; não obstante, advogo que não existe um "motor interno"
que propicie em cada um dos modos de produção o desenvolvimento das ditas forças produtivas. Tal desenvolvimento, segundo penso, deu-se de maneiras diversas e deveu-se a causas distintas em cada uma das referidas passagens; ademais, como evidenciado adiante, tais causas mostraram-se tanto endógenas como exógenas com respeito aos modos de produção que foram negados no correr da história. Atenhamo-nos, pois, a casos concretos.


A superação da comunidade primitiva dependeu da ação dos homens visando a poupar energia; nossos avoengos inventaram apetrechos cuja utilização, dada sua grande produtividade, acarretou de tal sorte o aumento da produção que se criaram as condições para o estabelecimento do escravismo.


De uma situação na qual apenas a atividade conjugada de cada pequeno grupo era capaz de produzir o bastante para a subsistência de seus integrantes passou-se a uma nova condição na qual cada indivíduo produzia o bastante para sobreviver e um excedente que poderia ser apropriado por um terceiro.


Geraram-se, desta maneira, as condições para a emergência do escravismo; vale dizer, a existência deste "delta" permitirá sua apropriação pelos que, com base nas mais variadas formas, subjugaram elementos do próprio grupo ou de grupos "inimigos", tornando-se escravistas.
 
Já a passagem do escravismo para o feudalismo estaria assentada, para vários autores, nas invasões dos bárbaros, as quais teriam suas raízes no crescimento demográfico observado, sobretudo, na Índia. Tais "invasões" - que devem ser tomadas como um deslocamento lento e não como uma "guerra relâmpago", especialistas afirmam que considerando-se a área onde hoje está a Alemanha passaram-se cem anos até tal movimento chegar à Península Ibérica - colocaram em xeque o Império Romano que se desagregou. Pois bem, estes povos, tidos como "bárbaros", à medida que iam se estabelecendo em seus novos domínios territoriais transferiam para as relações socioeconômicas a estrutura hierarquizada que mantinham em seu seio, pois não adotavam o escravismo como os gregos e os romanos; disso teria resultado o feudalismo caracterizado pelas obrigações dos servos para com os seus senhores. Já na área central do Império Romano teria se dado uma transformação similar, com a elite saindo das cidades e indo para o campo e concedendo liberdade a seus ex-escravos, que passaram à condição de servos.

Segundo tal visão, o processo de pressão econômica teria se originado nas fronteiras do Império e não em seu centro, também não se pode falar de uma revolução promovida pelos escravos, embora ocorressem revoltas que abalavam o sistema no sentido de amenizá-lo.


De sua parte, a superação do feudalismo apresentou uma fundamentação econômica própria e teria dependido, sobretudo, da expansão econômica devida à expansão das atividades comerciais, as quais revelaram duas faces inter-relacionadas: por um lado ocorreu a expansão ultramarina da Europa e o consequente alargamento em escala planetária do comércio, por outro as relações comerciais, crescentemente, teriam se interiorizado na Europa, é nesse processo, por exemplo, que se deu a chamada Segunda Servidão em áreas situadas na parte mais oriental do continente europeu. Observou- se, correlatamente, o processo de acumulação primitiva ao qual deve-se atribuir a emergência do trabalhador livre tanto de um senhor feudal como dos meios de produção indispensáveis à sua subsistência o que o leva a ser obrigado a vender sua força de trabalho à burguesia fato este que, como
anotado por K. Marx, representa o nascimento do proletariado. Tal nascimento
propiciou a autonomização do elemento econômico, o qual não se vê mais  preso imediatamente à face política da vida social. Assim, mercadoria, dinheiro e capital, relações sociais que são, chegam à sua culminância, vale dizer, universalizam-se objetiva e absolutamente, com a emergência da mercadoria força de trabalho enquanto propriedade absoluta do trabalhador direto.


Enfim, em cada um dos momentos históricos aqui contemplados verificaram-se fenômenos de caráter econômico que não podem ser
enquadrados num esquema único, disso concluímos no estudo acima citado não ser possível formular-se uma teoria geral das revoluções. O fenômeno econômico é básico e sempre está "conduzindo" os processos de transformação política, mas os determinantes desse desenvolvimento econômico são distintos e não podem ser reduzidos à ideia de um "motor interno" existente no seio de cada modo de produção. Evidentemente, esta última postulação não implica a inexistência da pressão, sobre os segmentos economicamente dominantes, exercida por uma classe ou mais classes sociais dominadas e/ou menos privilegiadas; tal ação define-se, ademais, como ingrediente indispensável ao coroamento das transformações políticas e econômicas que lastreiam a afirmação dos novos modos de produção.


Destarte, embora o elemento econômico sempre apareça como o propulsor das transformações havidas em termos dos modos de produção, cada passagem tem suas peculiaridades próprias, sendo impertinente referi-las a um corpo teórico unívoco.


Anote-se, por fim, que uma eventual superação do capitalismo pelo socialismo só admite, por ora, especulações sem bases objetivas concretas. Nossa postura quanto a tal passagem foi expendida no artigo COSTA, Iraci del Nero da & MOTTA, José Flávio. Hegel e o fim da história: algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, número 7, dez. 2000, p. 33-54; a ele, pois, remetemos o leitor interessado nessa nossa divagação teórica. Nesse texto, em termos genéricos, afirmamos que... "o capitalismo é a forma superior e derradeira da existência natural da sociabilidade humana [...] tal forma de existência só será superada pela ação do espírito, da consciência, votada à negação da propriedade privada sobre os meios de produção, base objetiva sobre a qual se assenta aquela forma de sociabilidade. Tal ação, política por sua natureza, pressupõe a conjugação orgânica de consciências, às quais, necessariamente, cumpre efetuar a crítica da situação presente e estabelecer, teórica e empiricamente, as bases da nova
sociedade.

A crítica da lógica do capital e a formulação do quadro em que se movimentará a nova forma de sociabilidade definem-se, portanto, como pressupostos desta última [...] A partir daí, abrir-se-ia a possibilidade para uma etapa distinta, diríamos mesmo antinatural, em que a sociabilidade humana ver-se-ia moldada conscientemente pelo homem: é o fim da história natural, o início da história posta pelo homem. É evidente que nada garante, a priori, que se efetive essa sociedade fruto da ação consciente do ser humano.


Exatamente porque ela não se porá "naturalmente" é que ela se apresenta como mera possibilidade [...]" Ademais, sua "sustentação só se verá garantida se forem obedecidas duas condições essenciais e sem as quais, cremos, é impossível pensar-se numa sociedade "pós-capitalista" auto-sustentável. Em primeiro, considerando que terá de haver livre assentimento com respeito à nova forma de sociabilidade, é indispensável uma ambiência democrática,
vale dizer, a democracia e os direitos que expressam a cidadania têm de prevalecer, absoluta e irrestritamente, e a estes elementos, obviamente, há de estar aliado o maior grau possível de liberdade pessoal e coletiva.

De outra parte, as vontades individuais desenvolvidas em tal ambiência devem associar- se livremente de sorte a chegar-se à organização necessária àquela sustentação. Liberdade e associação definem-se, pois, não só como metas desejáveis por si, mas, e sobretudo, como elementos imanentes à assim chamada sociabilidade "pós-capitalista" ou socialista, caso se queira." (Cf. artigo citado).


NOTA
(1) Sou grato ao Prof. Julio Manuel Pires pelas críticas e sugestões que efetuou à
versão inicial deste texto.
* Professor Livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo. 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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